quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

A RUA DA SENHORA DA LAPA


O século XIX

Com o virar do século, a devoção a São Bartolomeu não se extinguiu, mas perdeu com certeza muito do seu antigo vigor[1]. Começou-se a falar da Capela da Lapa, do lugar da Lapa e até da Rua da Lapa. Que a capela se chamava da Lapa já vem no assento de óbito de Manuel André falecido a 6 de Dezembro de 1790 e será confirmado depois de vários modos.

Aos seis dias do mês de Dezembro de mil setecentos e noventa faleceu repentinamente de uma apoplexia, andando trabalhando no seu campo, e sem sacramentos e testamento, Manuel André, lavrador, casado e morador junto à Capela da Senhora da Lapa, e aos sete dias do dito mês e ano foi sepultado na Matriz desta Vila (…)

Rua de S. Bartolomeu ou Rua Senhora da Lapa?

À rua que sempre se chamara Rua de São Bartolomeu, chamava-se, num assento de óbito de 1805, Rua da Senhora da Lapa:

Aos vinte e três dias do mês de Abril de mil oitocentos e cinco, faleceu com todos os sacramentos e com testamento Dona Francisca Constância Caetana Dinis, viúva que ficou de Francisco José Teixeira (ilegível), da Rua da Senhora da Lapa desta Vila, e no mesmo dia foi conduzida à Igreja de São Francisco, com enterro geral, e aí foi sepultada (…)

Os livros da décima conhecem uma D. Francisca Constância na Rua de São Bartolomeu, lado sul, sem dúvida junto ao aqueduto, ao menos desde 1773. Como é certamente a mesma do assento, deve ter enviuvado muito cedo. Devia ser contemporânea da construção da Igreja da Lapa e da colocação da talha neoclássica, para a qual pode ter contribuído.
Sendo assim, a Rua de S. Bartolomeu continuava com este nome nos livros da décima, mas ao nível popular já mudara há tempos para Rua da Senhora da Lapa.

A aguarela de Vivian

De começos do século há uma boa aguarela do pintor inglês Vivian que mostra a paisagem que se desfrutaria de um ponto pouco a norte da frente da Igreja da Lapa olhando para sul[2]. Vêem-se as magníficas torres da igreja e, à distância, o Convento de São Francisco, maior do que o suporíamos, o amontoado de edifícios do Mosteiro de Santa Clara e ainda, do lado direito, os arcos do aqueduto. Ao centro, em primeiro plano, dois homens, um que parece fidalgo e outro popular, entretêm-se em conversa com uma mulher jovem, sentada numa pedra. Por trás deles, além dum terceiro homem, ainda se admiram os campos que se estendem até aos conventos.
A aguarela dá-nos uma vista algo surpreendente sobre este recanto do pequeno concelho de Vila do Conde.

Em 1811

Em 1811, quando foi preciso arrecadar um imposto extraordinário para a guerra contra os napoleónicos, de entre irmandades e confrarias, a “devoção de Nossa Senhora da Lapa” foi uma das que mais pagou (depois da Ordem Terceira, da Confraria do Santíssimo e da das Almas).
Na Ordem Terceira, conserva-se uma imagem de Nossa Senhora da Lapa à imitação da do Pe. Ângelo de Sequeira. Pode vir ainda do século XVIII.

Os moradores do lugar de Nossa Senhora da Lapa em 1833

No rol da décima de 1833, menciona-se o lugar da Lapa. Eram estas as pessoas que nele viviam e a décima que pagavam:
Herdeiros de Ana Maria, por casas-torres – 240 réis.
José António Farinha, por casas altas – 280 réis; mais um maneio de 100 réis.
O Pe. José Francisco, de Formariz, por casa térrea – 100 réis.
António Fernandes da Lapa, por casas de sua morada – 160 réis; mais um maneio de 100 réis.
Um assento de baptismo 21 de Maio de 1834 menciona um Pe. João Fernandes Lapa, do lugar de Nossa Senhora da Lapa, que devia estar de lá ausente desde há anos e foi padrinho por procuração. Era naturalmente parente de António Fernandes da Lapa.
Numa relação, feita em 1836, de propriedades que pagavam foros a Santa Clara, há um item que diz:

Lugar de Nossa Senhora da Lapa
Os oficiais da Confraria de São Bartolomeu e Nossa Senhora da Lapa, pelo terreno em que fizeram a casa do ermitão, junto à capela, pagavam 10 réis.

Alguns moradores da Rua de S. Bartolomeu em 1833

Entre o lugar da Lapa e a Rua de S. Bartolomeu, devia mediar perto de meio quilómetro. Nesta rua havia gente nobre, gente endinheirada e certamente muita outra de poucas posses. Registam-se os nomes de quase todas as pessoas que aí viviam ou tinham haveres em 1833, o ano bem penoso em Vila do Conde que precedeu a chegada do liberalismo (assinalam-se com asterisco as que já aí residiam em 1805):
Lado norte, a partir de nascente:
José António Dias*, Rosa Maria Cardia*, João Martelinho Pereiro, Lourenço de Barros, Francisca Teresa, Pe. João José Teixeira de Faria, António José Dias, António José Gavino, José António Vairão, Pe. Manuel Gomes Dias, Manuel António Antunes, António Pereira Coutinho de Vilhena Rangel, Rafael Carneiro* e António Carneiro de Figueiredo.
Lado sul, também a partir de nascente:
António José Dias, José Alves*, José Pereira dos Reis, Manuel José Pereira dos Reis, António Fernandes, António Lopes Magalhães, Pe. Manuel Gomes Dias, Maria Rosa Joaquina*, António Pereira Coutinho de Vilhena Rangel e Manuel Pamplona.
Há nesta listas alguns nomes que nos merecem particular atenção: António Pereira Coutinho de Vilhena Rangel, Rafael Carneiro (de Sá Bezerra), Manuel Pamplona, António José Dias, Pe. João José Teixeira de Faria, José António Dias e Maria Rosa Joaquina.
Os três primeiros pagavam todos muito e pelo menos dois deles erem nobres ricos e influentes. António Pereira Coutinho de Vilhena Rangel era solteiro e dono da casa onde hoje está o Centro de Memória. Manuel Pamplona deveria ser seu familiar.
Os quatro últimos viriam a ser todos benfeitores da Lapa.
Há vários casos de moradores que têm propriedades de um e outro lado da rua.

O Pe. João José Teixeira de Faria e a sua sala de aula

O Pe. João José Teixeira de Faria na verdade não era padre pois não se ordenara, mas chamavam-lhe assim, como chamavam a outros que também tinham frequentado o seminário.
Desde 1826 a cerca de 1855, ele foi professor oficial de Gramática e Língua Latina, que era a única cadeira do ensino secundário que se ministrava em Vila do Conde.

A sua sala de aula ou escola – uma divisão da sua casa – ficava do lado norte da “Rua de S. Bartolomeu”, ao pé do aqueduto, provavelmente quase em frente da rendosa loja de comércio de Maria Rosa Joaquina. À frente voltaremos a ele.
As aulas ocupariam duas horas e meia de manhã e outras tantas de tarde, haveria um mês de férias, o de Setembro, e também pausas pelo Natal e pela Páscoa.
Foi grande benfeitor da Igreja da Lapa e com certeza foi ele que custeou os medalhões do tecto dela.

Enterros no adro da Igreja da Lapa em tempo de peste

Em Julho e Agosto de 1833, abateu-se sobre Vila do Conde uma devastadora epidemia de cólera. A princípio, os cadáveres foram enterrados na Matriz, como era usual, mas depois, na semana de entre 3 e 9 de Agosto, passaram a ser sepultados no adro da “Capela da Senhora da Lapa”. Enterraram-se aí 31, quase todos de mulheres.
Por essa altura, já os Mindeleiros, que os vila-condenses em Junho tinham altivamente recusado na Vila, se encontravam no Porto, cercados pelas tropas miguelistas.



Neste assento de óbito de 1790, a antiga Capela de São Bartolomeu já é designada por Capela da Senhora da Lapa (o lavrador Manuel André, “morador junta à Capela da Senhora da Lapa” morrera repentinamente, duma apoplexia).


Neste assento de óbito de Dona Francisca Constância Caetana Dinis (1805), diz-se que a falecida residira na Rua da Senhora da Lapa. A devoção a São Bartolomeu estava a ser esquecida ou pelo menos secundarizada.


Reprodução da aguarela de Vivian (começos do século XIX) que mostra as torres da Igreja da Lapa, Santa Clara, S. Francisco e ainda parte do aqueduto.


Retrato do “padre” João José Teixeira de Faria; o livro na mão recorda a sua actividade de professor.


Assentos de óbito de pessoas falecidas na peste de 1833 e sepultadas no adro da Igreja de Nossa Senhora da Lapa.




[1] Não são conhecidos ex-votos dedicados a este apóstolo…
[2] Por cerca de 1990 vimos no numa montra no Porto o original ou uma cópia muito perfeita desta aguarela. Era uma pintura encantadora, cheia de luz. Recordamo-nos que nos pediram por ela nove contos.

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