A RUA DA SENHORA DA LAPA
O século XIX
Com o virar do século, a devoção a São
Bartolomeu não se extinguiu, mas perdeu com certeza muito do seu antigo vigor[1].
Começou-se a falar da Capela da Lapa, do lugar da Lapa e até da Rua da Lapa.
Que a capela se chamava da Lapa já vem no assento de óbito de Manuel André
falecido a 6 de Dezembro de 1790 e será confirmado depois de vários modos.
Aos seis dias
do mês de Dezembro de mil setecentos e noventa faleceu repentinamente de uma
apoplexia, andando trabalhando no seu campo, e sem sacramentos e testamento,
Manuel André, lavrador, casado e morador junto à Capela da Senhora da Lapa, e aos sete dias do dito mês e ano foi
sepultado na Matriz desta Vila (…)
Rua
de S. Bartolomeu ou Rua Senhora da Lapa?
À rua que sempre se chamara Rua de São
Bartolomeu, chamava-se, num assento de óbito de 1805, Rua da Senhora da Lapa:
Aos vinte e
três dias do mês de Abril de mil oitocentos e cinco, faleceu com todos os
sacramentos e com testamento Dona Francisca Constância Caetana Dinis, viúva que
ficou de Francisco José Teixeira (ilegível),
da Rua da Senhora da Lapa desta Vila,
e no mesmo dia foi conduzida à Igreja de São Francisco, com enterro geral, e aí
foi sepultada (…)
Os livros da décima conhecem uma D.
Francisca Constância na Rua de São Bartolomeu, lado sul, sem dúvida junto ao
aqueduto, ao menos desde 1773. Como é certamente a mesma do assento, deve ter
enviuvado muito cedo. Devia ser contemporânea da construção da Igreja da Lapa e
da colocação da talha neoclássica, para a qual pode ter contribuído.
Sendo assim, a Rua de S. Bartolomeu
continuava com este nome nos livros da décima, mas ao nível popular já mudara
há tempos para Rua da Senhora da Lapa.
A
aguarela de Vivian
De começos do século há uma boa
aguarela do pintor inglês Vivian que mostra a paisagem que se desfrutaria de um
ponto pouco a norte da frente da Igreja da Lapa olhando para sul[2].
Vêem-se as magníficas torres da igreja e, à distância, o Convento de São
Francisco, maior do que o suporíamos, o amontoado de edifícios do Mosteiro de
Santa Clara e ainda, do lado direito, os arcos do aqueduto. Ao centro, em primeiro
plano, dois homens, um que parece fidalgo e outro popular, entretêm-se em
conversa com uma mulher jovem, sentada numa pedra. Por trás deles, além dum
terceiro homem, ainda se admiram os campos que se estendem até aos conventos.
A aguarela dá-nos uma vista algo
surpreendente sobre este recanto do pequeno concelho de Vila do Conde.
Em
1811
Em 1811, quando foi preciso arrecadar
um imposto extraordinário para a guerra contra os napoleónicos, de entre irmandades
e confrarias, a “devoção de Nossa Senhora da Lapa” foi uma das que mais pagou
(depois da Ordem Terceira, da Confraria do Santíssimo e da das Almas).
Na Ordem Terceira, conserva-se uma
imagem de Nossa Senhora da Lapa à imitação da do Pe. Ângelo de Sequeira. Pode
vir ainda do século XVIII.
Os moradores do lugar de Nossa Senhora da Lapa em 1833
No rol da décima de 1833, menciona-se o lugar da Lapa. Eram
estas as pessoas que nele viviam e a décima que pagavam:
Herdeiros de Ana Maria, por casas-torres – 240 réis.
José António Farinha, por casas altas – 280 réis; mais um
maneio de 100 réis.
O Pe. José Francisco, de Formariz, por casa térrea – 100
réis.
António Fernandes da Lapa, por casas de sua morada – 160
réis; mais um maneio de 100 réis.
Um assento de baptismo 21 de Maio de 1834 menciona um Pe.
João Fernandes Lapa, do lugar de Nossa Senhora da Lapa, que devia estar de lá
ausente desde há anos e foi padrinho por procuração. Era naturalmente parente
de António Fernandes da Lapa.
Numa relação, feita em 1836, de propriedades que pagavam
foros a Santa Clara, há um item que diz:
Lugar de Nossa Senhora da Lapa
Os oficiais da Confraria de São
Bartolomeu e Nossa Senhora da Lapa, pelo terreno em que fizeram a casa do
ermitão, junto à capela, pagavam 10 réis.
Alguns moradores da
Rua de S. Bartolomeu em 1833
Entre o lugar da Lapa e a Rua de S. Bartolomeu, devia mediar
perto de meio quilómetro. Nesta rua havia gente nobre, gente endinheirada e
certamente muita outra de poucas posses. Registam-se os nomes de quase todas as
pessoas que aí viviam ou tinham haveres em 1833, o ano bem penoso em Vila do
Conde que precedeu a chegada do liberalismo (assinalam-se com asterisco as que
já aí residiam em 1805):
Lado norte, a partir de nascente:
José António Dias*, Rosa Maria Cardia*, João Martelinho
Pereiro, Lourenço de Barros, Francisca Teresa, Pe. João José Teixeira de Faria,
António José Dias, António José Gavino, José António Vairão, Pe. Manuel Gomes
Dias, Manuel António Antunes, António Pereira Coutinho de Vilhena Rangel, Rafael
Carneiro* e António Carneiro de Figueiredo.
Lado sul, também a partir de nascente:
António José Dias, José Alves*, José Pereira dos Reis, Manuel
José Pereira dos Reis, António Fernandes, António Lopes Magalhães, Pe. Manuel
Gomes Dias, Maria Rosa Joaquina*, António Pereira Coutinho de Vilhena Rangel e
Manuel Pamplona.
Há nesta listas alguns nomes que nos merecem particular atenção:
António Pereira Coutinho de Vilhena Rangel, Rafael Carneiro (de Sá Bezerra),
Manuel Pamplona, António José Dias, Pe. João José Teixeira de Faria, José António
Dias e Maria Rosa Joaquina.
Os três primeiros pagavam todos muito e pelo menos dois
deles erem nobres ricos e influentes. António Pereira Coutinho de Vilhena
Rangel era solteiro e dono da casa onde hoje está o Centro de Memória. Manuel
Pamplona deveria ser seu familiar.
Os quatro últimos viriam a ser todos benfeitores da Lapa.
Há vários casos de moradores que têm propriedades de um e
outro lado da rua.
O Pe. João José
Teixeira de Faria e a sua sala de aula
O Pe. João José Teixeira de Faria na verdade não era padre
pois não se ordenara, mas chamavam-lhe assim, como chamavam a outros que também
tinham frequentado o seminário.
Desde 1826 a cerca de 1855, ele foi professor oficial de
Gramática e Língua Latina, que era a única cadeira do ensino secundário que se ministrava
em Vila do Conde.
A sua sala de aula ou escola – uma divisão da sua casa –
ficava do lado norte da “Rua de S. Bartolomeu”, ao pé do aqueduto, provavelmente
quase em frente da rendosa loja de comércio de Maria Rosa Joaquina. À frente
voltaremos a ele.
As aulas ocupariam duas horas e meia de manhã e outras
tantas de tarde, haveria um mês de férias, o de Setembro, e também pausas pelo
Natal e pela Páscoa.
Foi grande benfeitor da Igreja da Lapa e com certeza foi ele
que custeou os medalhões do tecto dela.
Enterros
no adro da Igreja da Lapa em tempo de peste
Em Julho e Agosto de 1833, abateu-se
sobre Vila do Conde uma devastadora epidemia de cólera. A princípio, os cadáveres
foram enterrados na Matriz, como era usual, mas depois, na semana de entre 3 e
9 de Agosto, passaram a ser sepultados no adro da “Capela da Senhora da Lapa”.
Enterraram-se aí 31, quase todos de mulheres.
Por essa altura, já os Mindeleiros, que
os vila-condenses em Junho tinham altivamente recusado na Vila, se encontravam
no Porto, cercados pelas tropas miguelistas.
Neste assento de óbito de 1790, a antiga Capela de São
Bartolomeu já é designada por Capela da
Senhora da Lapa (o lavrador Manuel André, “morador junta à Capela da Senhora da Lapa” morrera
repentinamente, duma apoplexia).
Neste assento de óbito de Dona Francisca Constância Caetana
Dinis (1805), diz-se que a falecida residira na Rua da Senhora da Lapa. A devoção a São Bartolomeu estava a ser
esquecida ou pelo menos secundarizada.
Reprodução da aguarela de Vivian (começos do século XIX)
que mostra as torres da Igreja da Lapa, Santa Clara, S. Francisco e ainda parte
do aqueduto.
Retrato do “padre” João José Teixeira de Faria; o livro na
mão recorda a sua actividade de professor.
Assentos de óbito de pessoas falecidas na peste de 1833 e
sepultadas no adro da Igreja de Nossa Senhora da Lapa.
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