quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

CISMÁTICOS NA LAPA


O cisma liberal

Os liberais, que em 1834 tomaram o poder em Portugal, eram de inspiração maçónica e não hesitaram em mergulhar o país em cisma, cortando relações com a Santa Sé, extinguindo as Ordens Religiosas, fechando os seminários e colocando à frente das dioceses homens que lhes eram fiéis e não tinham em conta a obediência ao Papa.
O encerramento dos conventos de São Francisco e do Carmo – mais de um mês antes do decreto do Mata-Frades – há-de ter tido um efeito profundo na vida religiosa de Vila do Conde e por isso também na Igreja da Lapa.
O Mosteiro de Santa Clara, como as outras casas religiosas femininas, não foi encerrado, mas entrou em morte lenta por não poder admitir noviças.

A Misericórdia, instituição cismática

Nos anos que precederam a vitória liberal, na direcção da Misericórdia de Vila do Conde estavam só daqueles homens que depois se manifestaram a favor do novo regime. E a situação naturalmente piorou após os liberais se apoderarem da direcção da câmara.
Em Junho de 1834, o prior vila-condense, que se chamava António Francisco Lopes e era vila-condense, da Rua dos Pelames (era devoto de Nossa Senhora da Lapa), foi expulso em Junho por Paulino de Carvalho, que naturalmente era afecto ao liberalismo e ao cisma. Mas, em 1839, este acabou também expulso. Sucedeu-lhe o terrível Domingos da Soledade Silos, que era uma combatente cismático e paroquiou Vila do Conde até 1850. Fizeram-no pregador régio, tendo pregado algumas vezes para a corte na Igreja da Lapa do Porto. Tem retrato na Misericórdia.
Os benfeitores da Igreja da Lapa que se referirão no capítulo seguinte foram todos benfeitores da Misericórdia.

A Igreja da Lapa no inquérito de 1845

Porventura por verificar que a Igreja da Lapa da sua paróquia tinha semelhanças muito próximas com a do Porto, o Pe. Silos falou dela com entusiasmo em 1845:

A Igreja da Lapa, templo riquíssimo pela arquitectura e tão decente no seu interior que Sua Ex.cia o Senhor D. Frei Caetano Brandão, quando o visitou, lhe concedeu licença perpétua para nele se expor o Santíssimo Sacramento. Foi fundação dos povos e fiéis da vila e são ainda hoje os que a sustentam; tem os necessários e decentes paramentos para celebrar.

Compare-se com esta insípida nota de 1825:

A capela de Nossa Senhora da Lapa é venerada pelos confrades e devotos; está decente.

Ex-voto de Rita da Piedade de Sousa

O ex-voto de Rita da Piedade de Sousa, de 1845, testemunha um grande milagre, a recuperação da visão por esta senhora vila-condense!
Sua legenda:

Testemunho de gratidão que dá a Jesus, Maria e José Rita da Piedade de Sousa, desta Vila, a qual, estando inteiramente cega e sujeitando-se a operação de catarata, por intercessão da Sagrada Família, recuperou a sua vista em 1845.

A gratidão à Sagrada Família supõe a já referida reorientação da devoção na Capela da Senhora da Lapa.
As roupagens das figuras sagradas são bastante simples, algo ocidentais. As da miraculada, do médico e do outro homem e mulher devem ser bastante próximas das do uso naquele ano de 1845.
Este ex-voto vem, naturalmente, do tempo do prior Domingos da Soledade Silos.
Este ex-voto de Rita da Piedade de Sousa deve-se encontrar no Porto, levado por Rocha Peixoto. Muito importante a representação da Sagrada Família.

Os medalhões do tecto da Lapa

O tecto da Igreja da Lapa ostenta dois medalhões, um no do corpo da igreja, outro no da capela-mor. O primeiro apresenta-se num estado de conservação bastante bom, metade do segundo está apagado[1].
 O do corpo da Igreja, além do medalhão propriamente dito, com a sua moldura também pintada, possui uma larga envolvência pictórica, com motivos de procedência clássica, destinada certamente a realçar a sua importância e a evitar que ele ficasse muito isolado na vasta superfície do tecto.
É aceitável concluir que os dois formam um conjunto, que se complementam para promover uma única mensagem.
O do corpo da igreja está inclinado para a esquerda e mostra um pastor muito enroupado e de cajado, entre as suas ovelhas, que se acolhe à sombra duma pequena árvore. Por sobre a cabeça, no alto, paira um pequeno grupo de anjos músicos (todos têm instrumentos, mas sempre diferentes). O quadro pode representar o anúncio do nascimento do Salvador aos pastores de Belém que se lê no Evangelho de São Lucas (cap. 2, 8-14).
No medalhão da capela-mor, a parte correspondente ao pastor do anterior está bastante apagada, como já foi dito, talvez devido a alguma persistente infiltração de água.
Ao cimo, representa-se um minúsculo Olho de Deus[2] e logo a seguir foi colocada uma inscrição latina coleante que não tem uma única palavra correctamente grafada. Leitura da inscrição:
COLUND NEAIN FORAMINEV.
O Prof. José Emídio Martins Lopes deu-se ao cuidado de a identificar e concluiu que queria reproduzir o início desta frase do Cântico dos Cânticos 2, 14:
Columba mea in foraminibus petrae, in caverna maceriae, ostende mihi faciem tuam, sonet vox tua in auribus meis, vox enim tua dulcis et facies tua decora.
Versão para português:
Minha pomba, nas fendas do rochedo,
No escondido dos penhascos,
Deixa-me ver o teu rosto,
Deixa-me ouvir a tua voz.
Pois a tua voz é doce
E o teu rosto encantador.
Sob a inscrição distingue-se com clareza o desenho duma pomba.
O Cântico dos Cânticos, livro de tema amoroso atribuído a Salomão mas escrito mais de sete séculos após a morte deste rei, é altamente poético e faz a delícia dos místicos, que o lêem alegoricamente, passando do canto do amor humano para o canto do amor divino[3].
No caso da Igreja da Lapa, pretendeu-se certamente que o pastor e os anjos do primeiro medalhão e a pedra do segundo se referissem a Belém e à Lapa do Presépio. “Columba mea in foraminibus petrae” (“Minha pomba, nas fendas do rochedo, no escondido dos penhascos”) deve equivaler a “Jesus Menino, na gruta da Lapa”.
Se isto for verdade, os medalhões teriam sido pintados em meados do século XIX quando era prior de Vila do Conde o Pe. Domingos da Soledade Silos e na Rua da Lapa vivia o professor de latim João José Teixeira de Faria.
Ignoramos quem tenha sido responsável pelos erros da frase latina.

O concelho de Vila do Conde alargado

Se a capela original de São Bartolomeu era como que uma sentinela à entrada nascente de Vila do Conde, isso mudou inteiramente com o alargamento do concelho pelos liberais em 1836, que o cresceram muito nessa direcção.
Apesar se então já haver entre a Vila e Azurara, a importância da Rua de São Bartolomeu ainda diminuíra pouco, o que só acontecerá com a abertura das novas estradas a partir da década de 60.

A anexação de Formariz a Vila do Conde

Provavelmente em 1867, a freguesia de Formariz foi anexada a Vila do Conde, já que nesse ano terminam os assentos paroquiais e no ano seguinte a junta de Vila do Conde o era também de “Formariz, anexa”. Embora antes já estivesse integrada no concelho, quebrava-se assim alguma barreira que restasse para a adesão dos fiéis de Formariz à Lapa[4].




Irmão da Misericórdia, o Pe. Silos tem lá também o seu retrato.


Ex-voto de Rita da Piedade de Sousa.
  

Medalhão do tecto do corpo da Igreja da Lapa.



Medalhão do tecto da capela-mor.




[1] Na Igreja Paroquial de Arcos, que vem de 1855, abunda a pintura quer no tecto quer nas paredes da capela-mor e mesmo nas do corpo do templo. Na de Touguinhó, há o painel do retábulo-mor, que deve remontar a 1842 ou anos seguintes. Os medalhões da Igreja da Lapa têm assim um enquadramento em termos de pintura ao serviço da divulgação duma mensagem religiosa.
[2] Há uma representação do Olho de Deus num ex-voto de 1838 à Santa Cruz de Balasar e na capela-mor da Igreja Paroquial de Arcos.
[3] Esta passagem do sentido literal para o alegórico foi, em tempos, estendida a todo o texto bíblico; o grande sábio vila-condense Pe. Manuel de Sá, SJ (1530-1596), foi um dos primeiros estudiosos modernos a reivindicar o regresso ao sentido literal.
[4] Esta anexação não foi pacífica. Segundo documentação do Arquivo Municipal, ainda em 1876 “o juiz, tesoureiro, devotos e zeladores da Igreja de Formariz” se recusavam a dar ao inventário da Matriz “as alfaias, paramentos e fundos daquela Igreja”. O governador civil mandou que o caso seguisse para o tribunal.

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