A IGREJA DA LAPA
A Escritura de Arrematação da Igreja da Lapa
A Escritura de
Arrematação da Igreja da Lapa é um longo documento notarial onde se encontram
informações valiosas.
Em 2 de Março de
1758, o tabelião dirigiu-se a casa do Prior Francisco de Lima e Azevedo Camelo
Falcão[1], Juiz
da Confraria de Nossa Senhora da Lapa, e aí se lavrou a Escritura de
Arrematação da Igreja da Lapa[2]. É
assim anterior de alguns meses à memória paroquial, datada de 14 de Maio do
mesmo ano.
Escritura de Arrematação e Contrato que
fazem os Juízes e mais Oficiais da Confraria de Nossa Senhora da Lapa e São
Bartolomeu desta Vila do Conde com João Monteiro e Matias de Passos, mestres-pedreiros
desta mesma.
Em nome de Deus, ámen.
Saibam quantos este público instrumento de escritura e arrematação e contrato,
ou como em direito melhor haja lugar e dizer se possa, virem que no ano do nascimento
de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e setecentos e cinquenta e oito anos, aos
dois dias do mês de Março do dito ano, nesta Vila do Conde e nas casas da
morada do Reverendo Prior Francisco de Lima e Azevedo Camelo Falcão, Juiz da
Confraria de Nossa Senhora da Lapa, aonde eu tabelião fui vindo, aí, perante
mim e testemunhas ao diante nomeadas e no fim deste instrumento assinadas,
foram presentes partes outorgantes e aceitantes, a saber, de uma o dito
Reverendo Prior e Juízes da dita Confraria e com ele o tesoureiro dela, João
Carneiro de Azevedo Duarte, e bem assim mais os deputados seguintes: Manuel
Leite de Brito, coadjutor da Igreja Matriz desta Vila, e o doutor António Luís
Pereira Campos e Manuel Machado de Barros e João da Costa Pereira, todos
moradores nesta dita Vila, e com eles, Luís Machado de Barros Vilas-Boas, Juiz
da Confraria de São Bartolomeu, a qual está anexa à da Senhora da Lapa, e da
outra João Monteiro e Matias de Passos[3]
e João António Dias, mestres-pedreiros, todos moradores nesta mesma Vila de
Conde, e uns e outros reconhecidos de mim tabelião pelos próprios, de que dou
fé, como também das testemunhas perante as quais e de mim tabelião, pelos ditos
Juízes e Oficiais, que também são irmãos da Confraria do Apóstolo São
Bartolomeu em cuja capela se acha colocada a imagem de Nossa Senhora da Lapa,
por todos e por cada um in solidum,
foi dito e disseram que estando em acto de conversação e mesa pretenderam
edificar de novo um templo em lugar do antigo para com toda a decência e
veneração estarem as imagens de Nossa Senhora da Lapa e do Apóstolo São Bartolomeu,
com as dos mais Santos e Santas e mais imagens que residiam na capela antiga,
fazendo todos os acrescentamentos de comprimento, altura e largura e as mais
mudanças de que precisariam para o bom ornato do mesmo templo e igreja, e para
este efeito deram a dita obra de empreitada ao mestre João Monteiro e a seus
consócios Matias de Passos e João António Dias e por preço de seiscentos e
quinze mil réis na forma da planta e apontamentos que todos viram, leram e
assinaram, como deles constavam, e porque queriam segurar a obrigação desta
obra por escritura pública estipulando nela por contrato as condições com que
há-de ser feita (…)
Algumas notas sobre os
colaboradores que acompanhavam o Prior Falcão: João Carneiro de Azevedo Duarte,
o tesoureiro da confraria, era um proprietário abastado; o doutor António Luís
Pereira Campos destacava-se no meio vila-condense e viria a ser nomeado
Procurador da Coroa e Fiscal da Fazenda Real sobre Sisas e mais Direitos Reais;
Manuel Machado de Barros devia ser irmão de Luís Machado de Barros Vilas-Boas
(que tinha ao menos uma propriedade na Rua da Laje); de João da Costa Pereira
nada sabemos.
Enquanto o fragmento
anterior dá conta sobretudo da ideia que presidia à construção que se queria
levantar, o que se segue contém informações bastante precisas sobre a obra a
executar, destinadas ao mestre-pedreiro construtor.
(…) o Corpo da Igreja há-de ter em vazio trinta e dois palmos e porão duas
pias de pedra ao pé da porta principal para a água benta, que serão feitas de
concha com todo o primor da arte, que terão dois palmos e meio de vão e três de
comprido, e bem assim dois cachorros bem lavrados de quartela, com suas meias
canas ao uso moderno, e juntamente uma porta falsa no lado do sul,
correspondente à porta da entrada do púlpito da parte do norte; e neste lado na
capela-mor fará uma porta para a sacristia com cinco palmos de largo e desde
alto apilarada por fora e por dentro nos alicerces do corpo de toda a Igreja e
capela-mor – lhe deixarão hum palmo de sapata pela parte de fora e por dentro um
quarto de palmo e os alicerces serão firmados em pedra firme e copiado da
capela-mor; e arco cruzeiro até onde hão-de ir as grades, conforme mostra a
planta, será feito de fiada, escudado, e enquanto às empenas da capela-mor e
arco cruzeiro as farão com o ponto necessário para a boa expedição das águas; e,
conforme o pedir a arte, as pirâmides do arco cruzeiro e capela-mor serão como
as do frontispício; e o arco cruzeiro, sem embargo do que mostra a planta, o
farão, no que diz respeito a largura, ou menos a largura dele, conforme eles oficiais
o determinaram, e as sapatas do alicerce do corpo da Igreja, pela parte de fora,
será de esquadria de friso; e que enquanto ao mais se fará a obra na forma da
planta; e que com todas estas condições haviam por arrematada a dita obra pela
dita quantia de seiscentos e quinze mil reis (…)
A réplica da Igreja da Lapa
do Porto
O que está determinado na segunda parte da Escritura de Arrematação não foi propriamente o que se construiu: entre o que se planeou e o que se executou há diferenças que se devem assinalar.
Dentro
da igreja, o caso do púlpito é o mais evidente: o projecto fala de um e
construíram-se dois. E o segundo não é acrescento posterior pois as belas
mísulas em que os dois assentam são iguais.
E
terão havido mais alterações.
A
fachada não deve corresponder a nada do que figurava na planta da escritura,
que não menciona as torres[4],
nem o frontão, nem as imagens dos santos Bartolomeu e Lourenço. Mas refere-se
às pirâmides do frontispício – que não existem: “as pirâmides do arco cruzeiro e capela-mor serão como as do frontispício” (supomos que por pirâmides se entendam pináculos).
Entre
a data da escritura e a da memória paroquial, que fala duma “construção magnífica
e custosa”, deve ter havido a grande mudança de planos, com enorme acrescento
de fundos. O dinheiro original não devia chegar para construir uma das torres.
Que
se terá passado? O Pe. Ângelo de Sequeira terá vindo à Lapa e galvanizado a
população? Terá algum brasileiro muito rico disponibilizado avultadíssima
quantia?
O
que é bastante claro é que se quis fazer da fachada principal desta igreja da
Lapa uma réplica em ponto menor da do Porto. Certamente ambicionou-se recriar
na Vila a grande dinâmica pastoral que se desenvolvia no Porto.
São
muitos os pontos em comum entre as duas fachadas: o frontão triangular com a coroa, as estátuas por
cima, as duas torres. Mas há outros elementos comuns: como a do Porto, a de
Vila do Conde ficava fora de portas, ambas assentam sobre uma elevação, em
ambas as torres se elevam ao lado do corpo da igreja.
Sobre
as torres, retenha-se que têm uma qualidade artística bem superior às do Porto.
Esta
perspectiva obriga a repensar a questão do arquitecto (ou arquitectos) da
igreja vila-condense da Lapa.
O
que se mandava na planta original estava alcance, parece-nos, de qualquer
mestre-pedreiro experiente.
A
parte que é cópia da igreja do Porto, pela sua qualidade artística, exigia pelo
menos artistas capazes.
Restam
o portal e as originais torres. Estas deviam pedir mesmo arquitecto e também
bons artistas.
Nota sobre o Prior
Falcão
O Prior Falcão nasceu em 29 de Outubro de 1706, em São Simão
da Junqueira, na casa do Cerqueiral, e foi baptizado pelo prior do mosteiro
existente na freguesia, D. Dionísio de Santo António. O pai chamava-se José
Pinto Carneiro e era cavaleiro professo da Ordem de Cristo; o nome da mãe era
D. Maria Luísa de Azevedo. Mais tarde, a família veio residir para Vila do
Conde.
Este prior iniciou actividade em Vila do Conde em 1737 (por
uma tia, abadessa de Santa Clara, lhe ter dado a apresentação do priorado[5])
e faleceu em 5 de Julho de 1759, com 52 anos[6].
A Escritura de Arrematação da obra da Igreja da Senhora da
Lapa foi lavrada em sua casa, o que pode significar que a sua saúde já não
andaria bem um ano antes, naquele Março de 1758.
A memória paroquial que escreveu é muito desenvolvida e
cuidada e tem, como já se disse, o original título de “Epílogo Topográfico”[7].
Passou dois meses a prepará-la.
Do legado que deixou na paróquia, constou um retábulo-mor na
Matriz, substituído pelo actual cerca de 1875.
Nos derradeiros meses de vida devia estar gravemente doente pois
era reservatário, havendo um novo prior em efectividade.
Não fez testamento.
As imagens do apóstolo São Bartolomeu[8]
e do mártir São Lourenço indicam a continuidade da devoção antiga que ali se
promovia; a coroa, destacadíssima, no lugar mais nobre, representa Nossa
Senhora (os reis portugueses tinham feito a entrega da sua coroa à Mãe de
Deus).
A coroa é real,
mas neste caso é um símbolo mariano.
Embora esta
nota não acentue a importância das torres no contexto da fachada frontal, o
lugar delas é o mais destacado: grandiosas, injustificadas nas suas oito
sineiras, mais para efeito estético.
Para apreciar a
sua grandiosidade e arte, basta compará-las com outras quase contemporâneas,
como as da Igreja do Mosteiro de São Simão da Junqueira ou as da Matriz da
Póvoa de Varzim.
O interior neoclássico
A diferença
estilística entre a exuberância da fachada do templo e o seu interior é
surpreendente. Ao barroco já próximo do rococó do exterior corresponde a talha
neoclássica dos retábulos. Agostinho Araújo cita um visitador que em 1795 se
exprimiu assim sobre esta igreja: “Achei a Capela de Nossa Senhora da Lapa
optimamente ordenada”. É bem possível que a talha neoclássica viesse data
próxima. Aliás, é flagrante a semelhança estrutural entre o retábulo-mor da Igreja
da Lapa e o correspondente retábulo-mor da Matriz, datado, ao que se julga, de
1785[9].
A nota da
Direcção-Geral do Património Cultural
que já citámos exprime-se assim sobre ele:
Não é possível determinar em que
época o templo ficou concluído, mas a campanha decorativa do interior, de
características já neoclássicas, prolongou-se, com certeza, até ao início do
século XIX. Destacam-se os retábulos colaterais, a sanefa que coroa o arco
triunfal, e o retábulo-mor, em talha dourada e branca.
Por retábulos colaterais entendem-se naturalmente o de São
Bartolomeu e o de São Lourenço.
O recente restauro desta talha beneficiou-a muito.
É possível que a morte do Prior Falcão em 1759 tenha afectado
o impulso e o andamento das obras adiando-as.
Repare-se que o tamanho das imagens se
adequa sempre ao espaço que lhes foi destinado.
Vila do Conde
renovada
Em Vila do Conde, no século XVIII e em particular na sua segunda
metade, construiu-se muito. Não se ergueu só a parte nova do Mosteiro de Santa
Clara, muitos nobres edificaram residências apalaçadas. São disso principais exemplos
a Casa da Fervença (Museu de Bilros), a Casa Grande (Hotel Estalagem do Brazão),
a Casa dos Vasconcelos (Auditório Municipal), a Casa dos Coelhos (Instituto de
São José), a Casa da Praça (Centro Paroquial). A própria Casa de São Sebastião (Centro
de Memória) há-de ter sido sujeita a obras.
Foi neste contexto edificador que se levantou a magnífica
Igreja de Nossa Senhora da Lapa como homenagem à Mãe de Deus.
Mais
fotografias da talha neoclássica da Igreja da Lapa
Ver abaixo.
Fachada principal da
Igreja de Nossa Senhora da Lapa de Vila do Conde.
Igreja da Lapa do Porto cuja fachada principal inspirou de
perto a de Vila do Conde.
Importante pormenor da
fachada da Igreja da Lapa que elucida sobre as intenções de quem promoveu a construção
deste templo.
Esta bela porta barroca merece ser comparada com a do
Convento do Carmo, com a da Igreja do Mosteiro da Junqueira e com a da Matriz
da Póvoa, todas de tempos muito próximos.
Majestosa coroa que
representa Nossa Senhora da Lapa no lugar mais destacado da fachada da igreja, sobre
o frontão.
Uma das vistosas torres da Igreja da Lapa de Vila do Conde,
a do sul.
Majestoso interior neoclássico
da Igreja da Lapa visto do coro.
Excelente retábulo neoclássico do altar-mor: na maior
parte repete o correspondente da Matriz.
Contemporâneo do da Lapa, o retábulo o retábulo-mor da Matriz tem com
aquele as mais notórias semelhanças.
A imagem da padroeira tem este rico enquadramento.
Belíssimo
sacrário da Lapa.
Retábulo de São Bartolomeu. A imagem, recente, do apóstolo
mostra-o segurando o cadeado que prende Satanás, como na fachada da igreja.
Retábulo de São Lourenço. Como no de São Bartolomeu, também
neste há mísulas para mais quatro imagens de pequenas dimensões. A de São
Lourenço é também recente.
A delicada sanefa do arco cruzeiro.
[1] A
casa ficava na Rua da Igreja.
[2] A
escritura em causa foi publicada por Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas, que
a copiou no Arquivo Distrital do Porto, e republicada por José Emídio Martins
Lopes.
[3] Era
artilheiro no Castelo.
[4] A
escritura, que menciona a pia de água benta e o seu primor de arte, não refere
as torres.
[5] Nessa
altura já este jovem sacerdote deveria ter uma filha no lugar de Casavedra,
Junqueira, que casou em 1751 com um nobre.
[6] Em 27
de Março, tinha-lhe morrido um escravo de nome João.
[7] A
palavra epílogo talvez correspondesse a resumo. É conhecida uma crónica dos
frades lóios de Vilar de Frades, de 1658, que tem por título “Epílogo e Compêndio da Origem da
Congregação de São João Evangelista…”
[8] À
imagem deste apóstolo falta o cadeado que acorrentava Satanás.
[9] Era
então Prior António Fernandes Lourenço de Lima, o imediato sucessor do Prior
Falcão. Naturalmente, não sabemos qual é anterior, se o retábulo da Lapa (mais
os retábulos colaterais), se o da Matriz.
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