quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

A IGREJA DA LAPA


A Escritura de Arrematação da Igreja da Lapa

A Escritura de Arrematação da Igreja da Lapa é um longo documento notarial onde se encontram informações valiosas.
Em 2 de Março de 1758, o tabelião dirigiu-se a casa do Prior Francisco de Lima e Azevedo Camelo Falcão[1], Juiz da Confraria de Nossa Senhora da Lapa, e aí se lavrou a Escritura de Arrematação da Igreja da Lapa[2]. É assim anterior de alguns meses à memória paroquial, datada de 14 de Maio do mesmo ano.

Escritura de Arrematação e Contrato que fazem os Juízes e mais Oficiais da Confraria de Nossa Senhora da Lapa e São Bartolomeu desta Vila do Conde com João Monteiro e Matias de Passos, mestres-pedreiros desta mesma.
Em nome de Deus, ámen.
Saibam quantos este público instrumento de escritura e arrematação e contrato, ou como em direito melhor haja lugar e dizer se possa, virem que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e setecentos e cinquenta e oito anos, aos dois dias do mês de Março do dito ano, nesta Vila do Conde e nas casas da morada do Reverendo Prior Francisco de Lima e Azevedo Camelo Falcão, Juiz da Confraria de Nossa Senhora da Lapa, aonde eu tabelião fui vindo, aí, perante mim e testemunhas ao diante nomeadas e no fim deste instrumento assinadas, foram presentes partes outorgantes e aceitantes, a saber, de uma o dito Reverendo Prior e Juízes da dita Confraria e com ele o tesoureiro dela, João Carneiro de Azevedo Duarte, e bem assim mais os deputados seguintes: Manuel Leite de Brito, coadjutor da Igreja Matriz desta Vila, e o doutor António Luís Pereira Campos e Manuel Machado de Barros e João da Costa Pereira, todos moradores nesta dita Vila, e com eles, Luís Machado de Barros Vilas-Boas, Juiz da Confraria de São Bartolomeu, a qual está anexa à da Senhora da Lapa, e da outra João Monteiro e Matias de Passos[3] e João António Dias, mestres-pedreiros, todos moradores nesta mesma Vila de Conde, e uns e outros reconhecidos de mim tabelião pelos próprios, de que dou fé, como também das testemunhas perante as quais e de mim tabelião, pelos ditos Juízes e Oficiais, que também são irmãos da Confraria do Apóstolo São Bartolomeu em cuja capela se acha colocada a imagem de Nossa Senhora da Lapa, por todos e por cada um in solidum, foi dito e disseram que estando em acto de conversação e mesa pretenderam edificar de novo um templo em lugar do antigo para com toda a decência e veneração estarem as imagens de Nossa Senhora da Lapa e do Apóstolo São Bartolomeu, com as dos mais Santos e Santas e mais ima­gens que residiam na capela antiga, fazendo todos os acrescen­tamentos de comprimento, altura e largura e as mais mudanças de que precisariam para o bom ornato do mesmo templo e igreja, e para este efeito deram a dita obra de empreitada ao mestre João Monteiro e a seus consócios Matias de Passos e João António Dias e por preço de seiscentos e quinze mil réis na forma da planta e aponta­mentos que todos viram, leram e assinaram, como deles constavam, e porque queriam segurar a obrigação desta obra por escritura pública estipulando nela por contrato as condições com que há-de ser feita (…)

Algumas notas sobre os colaboradores que acompanhavam o Prior Falcão: João Carneiro de Azevedo Duarte, o tesoureiro da confraria, era um proprietário abastado; o doutor António Luís Pereira Campos destacava-se no meio vila-condense e viria a ser nomeado Procurador da Coroa e Fiscal da Fazenda Real sobre Sisas e mais Direitos Reais; Manuel Machado de Barros devia ser irmão de Luís Machado de Barros Vilas-Boas (que tinha ao menos uma propriedade na Rua da Laje); de João da Costa Pereira nada sabemos.
Enquanto o fragmento anterior dá conta sobretudo da ideia que presidia à construção que se queria levantar, o que se segue contém informações bastante precisas sobre a obra a executar, destinadas ao mestre-pedreiro construtor.

(…) o Corpo da Igreja há-de ter em vazio trinta e dois palmos e porão duas pias de pedra ao pé da porta principal para a água benta, que serão feitas de concha com todo o primor da arte, que terão dois palmos e meio de vão e três de comprido, e bem assim dois cachorros bem lavrados de quartela, com suas meias canas ao uso moderno, e juntamente uma porta falsa no lado do sul, correspondente à porta da entrada do púlpito da parte do norte; e neste lado na capela-mor fará uma porta para a sacristia com cinco palmos de largo e desde alto apilarada por fora e por dentro nos alicerces do corpo de toda a Igreja e capela-mor – lhe deixarão hum palmo de sapata pela parte de fora e por dentro um quarto de palmo e os alicerces serão firmados em pedra firme e copiado da capela-mor; e arco cruzeiro até onde hão-de ir as grades, conforme mostra a planta, será feito de fiada, escu­dado, e enquanto às empenas da capela-mor e arco cruzeiro as farão com o ponto necessário para a boa expedição das águas; e, conforme o pedir a arte, as pirâmides do arco cruzeiro e capela-mor serão como as do frontispício; e o arco cruzeiro, sem embargo do que mostra a planta, o farão, no que diz respeito a largura, ou menos a largura dele, conforme eles oficiais o determinaram, e as sapatas do alicerce do corpo da Igreja, pela parte de fora, será de esquadria de friso; e que enquanto ao mais se fará a obra na forma da planta; e que com todas estas condições haviam por arrematada a dita obra pela dita quantia de seiscentos e quinze mil reis (…)

A réplica da Igreja da Lapa do Porto

O que está determinado na segunda parte da Escritura de Arrematação não foi propriamente o que se construiu: entre o que se planeou e o que se executou há diferenças que se devem assinalar.
Dentro da igreja, o caso do púlpito é o mais evidente: o projecto fala de um e construíram-se dois. E o segundo não é acrescento posterior pois as belas mísulas em que os dois assentam são iguais.
E terão havido mais alterações.
A fachada não deve corresponder a nada do que figurava na planta da escritura, que não menciona as torres[4], nem o frontão, nem as imagens dos santos Bartolomeu e Lourenço. Mas refere-se às pirâmides do frontispício – que não existem: “as pirâmides do arco cruzeiro e capela-mor serão como as do frontispício” (supomos que por pirâmides se entendam pináculos).
Entre a data da escritura e a da memória paroquial, que fala duma “construção magnífica e custosa”, deve ter havido a grande mudança de planos, com enorme acrescento de fundos. O dinheiro original não devia chegar para construir uma das torres.
Que se terá passado? O Pe. Ângelo de Sequeira terá vindo à Lapa e galvanizado a população? Terá algum brasileiro muito rico disponibilizado avultadíssima quantia?
O que é bastante claro é que se quis fazer da fachada principal desta igreja da Lapa uma réplica em ponto menor da do Porto. Certamente ambicionou-se recriar na Vila a grande dinâmica pastoral que se desenvolvia no Porto.
São muitos os pontos em comum entre as duas fachadas: o frontão triangular com a coroa, as estátuas por cima, as duas torres. Mas há outros elementos comuns: como a do Porto, a de Vila do Conde ficava fora de portas, ambas assentam sobre uma elevação, em ambas as torres se elevam ao lado do corpo da igreja.
Sobre as torres, retenha-se que têm uma qualidade artística bem superior às do Porto.
Esta perspectiva obriga a repensar a questão do arquitecto (ou arquitectos) da igreja vila-condense da Lapa.
O que se mandava na planta original estava alcance, parece-nos, de qualquer mestre-pedreiro experiente.
A parte que é cópia da igreja do Porto, pela sua qualidade artística, exigia pelo menos artistas capazes.
Restam o portal e as originais torres. Estas deviam pedir mesmo arquitecto e também bons artistas.

Nota sobre o Prior Falcão

O Prior Falcão nasceu em 29 de Outubro de 1706, em São Simão da Junqueira, na casa do Cerqueiral, e foi baptizado pelo prior do mosteiro existente na freguesia, D. Dionísio de Santo António. O pai chamava-se José Pinto Carneiro e era cavaleiro professo da Ordem de Cristo; o nome da mãe era D. Maria Luísa de Azevedo. Mais tarde, a família veio residir para Vila do Conde.
Este prior iniciou actividade em Vila do Conde em 1737 (por uma tia, abadessa de Santa Clara, lhe ter dado a apresentação do priorado[5]) e faleceu em 5 de Julho de 1759, com 52 anos[6].
A Escritura de Arrematação da obra da Igreja da Senhora da Lapa foi lavrada em sua casa, o que pode significar que a sua saúde já não andaria bem um ano antes, naquele Março de 1758.
A memória paroquial que escreveu é muito desenvolvida e cuidada e tem, como já se disse, o original título de “Epílogo Topográfico”[7]. Passou dois meses a prepará-la.
Do legado que deixou na paróquia, constou um retábulo-mor na Matriz, substituído pelo actual cerca de 1875.
Nos derradeiros meses de vida devia estar gravemente doente pois era reservatário, havendo um novo prior em efectividade.
Não fez testamento.
As imagens do apóstolo São Bartolomeu[8] e do mártir São Lourenço indicam a continuidade da devoção antiga que ali se promovia; a coroa, destacadíssima, no lugar mais nobre, representa Nossa Senhora (os reis portugueses tinham feito a entrega da sua coroa à Mãe de Deus).
A coroa é real, mas neste caso é um símbolo mariano.

Embora esta nota não acentue a importância das torres no contexto da fachada frontal, o lugar delas é o mais destacado: grandiosas, injustificadas nas suas oito sineiras, mais para efeito estético.
Para apreciar a sua grandiosidade e arte, basta compará-las com outras quase contemporâneas, como as da Igreja do Mosteiro de São Simão da Junqueira ou as da Matriz da Póvoa de Varzim.


O interior neoclássico

A diferença estilística entre a exuberância da fachada do templo e o seu interior é surpreendente. Ao barroco já próximo do rococó do exterior corresponde a talha neoclássica dos retábulos. Agostinho Araújo cita um visitador que em 1795 se exprimiu assim sobre esta igreja: “Achei a Capela de Nossa Senhora da Lapa optimamente ordenada”. É bem possível que a talha neoclássica viesse data próxima. Aliás, é flagrante a semelhança estrutural entre o retábulo-mor da Igreja da Lapa e o correspondente retábulo-mor da Matriz, datado, ao que se julga, de 1785[9].
A nota da Direcção-Geral do Património Cultural que já citámos exprime-se assim sobre ele:
 
Não é possível determinar em que época o templo ficou concluído, mas a campanha decorativa do interior, de características já neoclássicas, prolongou-se, com certeza, até ao início do século XIX. Destacam-se os retábulos colaterais, a sanefa que coroa o arco triunfal, e o retábulo-mor, em talha dourada e branca. 

Por retábulos colaterais entendem-se naturalmente o de São Bartolomeu e o de São Lourenço.
O recente restauro desta talha beneficiou-a muito.
É possível que a morte do Prior Falcão em 1759 tenha afectado o impulso e o andamento das obras adiando-as.
Repare-se que o tamanho das imagens se adequa sempre ao espaço que lhes foi destinado.

Vila do Conde renovada

Em Vila do Conde, no século XVIII e em particular na sua segunda metade, construiu-se muito. Não se ergueu só a parte nova do Mosteiro de Santa Clara, muitos nobres edificaram residências apalaçadas. São disso principais exemplos a Casa da Fervença (Museu de Bilros), a Casa Grande (Hotel Estalagem do Brazão), a Casa dos Vasconcelos (Auditório Municipal), a Casa dos Coelhos (Instituto de São José), a Casa da Praça (Centro Paroquial). A própria Casa de São Sebastião (Centro de Memória) há-de ter sido sujeita a obras.

Foi neste contexto edificador que se levantou a magnífica Igreja de Nossa Senhora da Lapa como homenagem à Mãe de Deus.

Mais fotografias da talha neoclássica da Igreja da Lapa

Ver abaixo.



Fachada principal da Igreja de Nossa Senhora da Lapa de Vila do Conde.


Igreja da Lapa do Porto cuja fachada principal inspirou de perto a de Vila do Conde.


Importante pormenor da fachada da Igreja da Lapa que elucida sobre as intenções de quem promoveu a construção deste templo.


Esta bela porta barroca merece ser comparada com a do Convento do Carmo, com a da Igreja do Mosteiro da Junqueira e com a da Matriz da Póvoa, todas de tempos muito próximos.


Majestosa coroa que representa Nossa Senhora da Lapa no lugar mais destacado da fachada da igreja, sobre o frontão.



Uma das vistosas torres da Igreja da Lapa de Vila do Conde, a do sul.


Majestoso interior neoclássico da Igreja da Lapa visto do coro.


Excelente retábulo neoclássico do altar-mor: na maior parte repete o correspondente da Matriz.


Contemporâneo do da Lapa, o retábulo o retábulo-mor da Matriz tem com aquele as mais notórias semelhanças.


A imagem da padroeira tem este rico enquadramento.


Belíssimo sacrário da Lapa.


Retábulo de São Bartolomeu. A imagem, recente, do apóstolo mostra-o segurando o cadeado que prende Satanás, como na fachada da igreja.


Retábulo de São Lourenço. Como no de São Bartolomeu, também neste há mísulas para mais quatro imagens de pequenas dimensões. A de São Lourenço é também recente.


A delicada sanefa do arco cruzeiro.





[1] A casa ficava na Rua da Igreja.
[2] A escritura em causa foi publicada por Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas, que a copiou no Arquivo Distrital do Porto, e republicada por José Emídio Martins Lopes.
[3] Era artilheiro no Castelo.
[4] A escritura, que menciona a pia de água benta e o seu primor de arte, não refere as torres.
[5] Nessa altura já este jovem sacerdote deveria ter uma filha no lugar de Casavedra, Junqueira, que casou em 1751 com um nobre.
[6] Em 27 de Março, tinha-lhe morrido um escravo de nome João.
[7] A palavra epílogo talvez correspondesse a resumo. É conhecida uma crónica dos frades lóios de Vilar de Frades, de 1658, que tem por título “Epílogo e Compêndio da Origem da Congregação de São João Evangelista…”
[8] À imagem deste apóstolo falta o cadeado que acorrentava Satanás.
[9] Era então Prior António Fernandes Lourenço de Lima, o imediato sucessor do Prior Falcão. Naturalmente, não sabemos qual é anterior, se o retábulo da Lapa (mais os retábulos colaterais), se o da Matriz.

Sem comentários:

Enviar um comentário